quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Caminhada - Sul da Bahia

DIÁRIO – São Paulo, 04/03/1990 – 

Até a volta em paz.



DIÁRIO – Caravelas/BA, 07/03/90 –


A paz exterior é imensurável. Ainda estou meio preso às dores dos que amo que ficaram para traz. Me sinto como se estivesse me redescobrindo e descobrindo, com a suavidade e serenidade pairando no ar. Como se me tocasse com delicadeza. Amor pleno. E aos poucos vou ficando mais tranquilo para com aqueles e comigo consequentemente. Tudo por amor.


          O dia amanheceu lindo e fiz um reconhecimento do local. A beira-mar vários barcos de pesca à minha direita, à frente uma ilha convidativa, e à esquerda uma praia de perder de vista.
Caravelas se mostrou acolhedora desde o princípio, com sua gente calma e carinhosa.
          No dia seguinte, “me preparei” para uma incursão à Ilha da Cassumba. Assim que amanheceu, atravessei do continente para a ilha com a ajuda de meu pé-de-pato e a facilidade da maré baixa. Mal sabia o que me esperava.
          Ao chegar à ilha sem maiores dificuldades me bateu uma vontade de cagar. Fiz um buraco e tirei a bermuda. Me lavei. Olhei para os lados e não via ninguém. Não tive dúvida: amarrei o pé-de-pato com a bermuda servindo de alça, coloquei-os no ombro e saí para a caminhada nu. A sensação de liberdade era muito grande. Somente eu e a natureza. Somente a natureza!
          Durante o caminho notara vários troncos e galhos de árvores à beira-mar, característicos de mangue. A faixa de areia da praia era curta, de uns 20 metros aproximadamente. Em pouco tempo cheguei a um canal com uns 200 metros de largura. Então pensei: - Será que continuo em frente ou volto?
          Exatamente após me perguntar em pensamento, vejo um pássaro atravessar da minha margem para a outra, assim como outro pássaro da mesma espécie na sequência. Assim, vesti minha bermuda, coloquei o pé-de-pato e parti para a travessia do canal. Após esta, continuei a caminhada nu, passando por vários riachos e regatos, que desembocavam na praia, e a repetição da paisagem costeira com o mangue à minha direita. Foi então que avistei ao longe um barco de pesca numa pequena baia, lavando as redes. Pela posição do sol estava próximo do meio dia. Me vesti e fui em sua direção, querendo saber se deveria voltar por onde vim, ou continuar em frente, chegando até Nova Viçosa, cidade costeira ao sul de Caravelas.
          Quando ouviram de onde tinha vindo, ficaram surpresos e disseram para voltar pelo mesmo caminho, e que não poderiam me levar de volta, pois tinham de ir para Alcobaça, próxima cidade costeira ao norte de Caravelas. Me alertaram para os perigos que correra e corria, uma vez que a maré subia e nos canais havia a possibilidade de tubarões. Almocei com eles (moqueca de peixe com farinha) e bebi bastante água. 
          De tanque cheio, parti sem a tranqüilidade reinante até ali. Agradeci o alimento que reforçara minhas energias e saí correndo ao meu destino. Se no princípio a maior parte fiz caminhando, no retorno mais nadei do que corri. Os riachos que atravessei a pé de 5 à 10 metros de largura, tive de atravessá-los a nado e representavam até 50 metros de largura com a maré subindo. E para complicar, por mais que tentasse andar com a água na cintura, não conseguia, pois o chão era lodoso, característico de mangue. Só agora entendia a razão de tantos troncos e galhos à beira-mar.
          A paisagem mudara completamente. Raros eram os trechos de praia, com muitas árvores e troncos despontando fora d’água. Foi quando avistei o canal dos pássaros, agora com uns 400 à 500 metros de nado à vista, e o risco de tubarões, pois os canais são mais profundos e a água mais gelada consequentemente, tornando-se um local possível para a passagem de tubarões. Olhei aquela paisagem hostil. O sol bem baixo e o vislumbre da possibilidade de ter de dormir na ilha, imaginando-me enterrado no mangue para me proteger dos pernilongos. Mesmo com câimbra nos pés já aparecendo aos poucos, não tinha escolha e iniciei a travessia com pensamento positivo de que nada de mal me aconteceria. Lentamente fui atravessando o canal, segundo as forças de que dispunha, sem a menor preocupação, confiante e disposto a enfrentar o que se apresentava. Foi desta forma que cheguei à margem oposta, e após algum trecho de praia, já avistava minha barraca no continente.
          O sol estava quase se pondo e a distância até o continente era enorme, sem como precisar. Deitei na areia para descansar um pouco e me preparar para a travessia. Não imaginava que poderia conseguir, mas após ver o continente minha confiança aumentou e pensei: “- Se cheguei até aqui, eu vou chegar na praia de qualquer jeito!” Minhas forças se renovaram e sabia que conseguiria retornar.
Iniciei o nado bem devagar, nadando e parando, nadando e boiando para tirar a câimbra, nadando e parando,... nem aí para os tubarões. Então, tive de parar de nadar, pois um pequeno barco a motor voltava de mais um dia de pesca. Ao vê-lo nem pensei em pedir ajuda, pois meu desafio não terminara. Passaram próximo de mim, me viram e se foram. Porém, de repente, viraram o barco, retornando em minha direção. Ao se aproximarem, fui para dentro do barco e pude admitir: “- Nossa! Como estou cansado!”. Contei-lhes a minha história e o pescador chefe não dizia outra coisa:
- Você é louco! Tá cheio de tubarão! A toda hora olhava para mim e fazia um sinal característico me chamando de doido. Mais tarde, noutro dia, cruzou comigo na cidade e fez o mesmo sinal.
          Neste dia uma parte inocente morreu em mim. Vi a criança e o adulto, mas também o homem-criança. Precisava pensar e planejar melhor o que fazer. Me informar melhor dos trajetos que iria percorrer, sempre atento ao fator maré, que era preponderante para quem caminhava pela praia. O dia seguinte foi de descanso e meditação, refletindo sobre o dia anterior.


DIÁRIO –  Caravelas/BA, 10/03/1990 –

A cada dia percebo mais claramente a perfeição, com a ajuda da simplicidade natural do meio, mais o libertar-se no ser, que é cada vez mais presente. O que se é, ou o que sou e sempre fui, mais o novo a cada dia.


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